Miguilim, Dito e o Pequeno Príncipe

Pois veio o Pequeno Príncipe, desta vez, a cair no sítio de Miguilim e Dito, no Mutúm, pleno sertão! Trazia consigo um carneiro.

Exceto o alvoroço das galináceas, os meninos nem estranharam aquela figura aparecer por ali e aproximar-se, mesmo que esquisitamente trajando cachecol e casaco. Continuavam brincando de bolinha de gude, acocorados na terra dura e seca.

Fazia muito tempo que o Pequeno Príncipe visitara a Terra e, movido pelas lembranças, agia com naturalidade. Curioso, seus olhos claros como os gudes, acompanhavam a brincadeira para perceber qual era o sentido do jogo.

Então, atento, Dito disse-lhe que deixasse o carneiro livre, pois ali todos os bichos eram amigos e que jogasse também. Nisso, pingo-de -ouro, balançando o rabo, já fazia festa, em boas vindas ao carneiro.

Pondo-se à vontade e, pois, despreocupado, o Pequeno Príncipe aceitou o convite.

Não foi difícil aprender a jogar, mas o que o maravilhou mesmo, foi a inédita sensação de seus dedos roçando a terra da Terra!

Já enjoado daquele passatempo, Miguilim propôs que fossem aos seus esconderijos nas árvores, comer mel, frutas e fazer barquinhos de casca de buriti e, largando as bolinhas, pôs-se a correr, gritando “quem chegar por último é fantasma de outro mundo”.

Seguindo a desabalada carreira, corria o Pequeno Príncipe o mais que podia e não podia tanto, pois não havia caminho, mas um emaranhado de troncos, galhos, folhas, paus, pedras, veredas. Sem contar que seu cachecol e casaco enroscavam aqui e ali.

Quando deixou de ouvir as vozes dos meninos, o Pequeno Príncipe parou, desorientado e ofegante. Logo, sobre sua cabeça, uma chuva de coquinhos e as risadas de Miguilim e Dito, vindas lá da alta árvore. Ali era o esconderijo.

Os três ajeitaram-se nas saliências do grosso tronco e deliciavam-se com um resto de colmeia, escorrendo mel. Logo mais desceriam para beber água do monjolo, comer frutas e cortar as ramas caídas no buritizal para fazer barquinhos e competir no ribeirão.

O Pequeno Príncipe sentia-se feliz como nunca; tudo absorvia e o fascinava: os pássaros, as plantas, os aromas, os bichos, insetos, as águas, o majestoso sol e, principalmente, Miguilim e Dito. Eles eram tão livres, divertidos e bondosos! Pensou que gostariam de seu amigo aviador e sentiu um suave aperto de saudades no coração.

De leve, Dito tocou-lhe o braço, deu uma piscadela e sorriu, dizendo-lhe que depois iriam precisar do seu cachecol para colocar as frutas e os bolsos do seu casaco para encher de sementes. Nesse instante, o Pequeno Príncipe viu que Dito sabia das sensibilidades.

Agora lembravam de quem tinha chegado por último e chamavam o Pequeno Príncipe de fantasma do outro mundo. Este ria alto e gostoso como há muito não fazia e pôs-se  a contar dos mundos que percorrera, das gentes que conheceu, do seu pequeno planeta, dos baobás e de uma rosa. E, sem qualquer embargo, contou do seu amigo aviador de anos atrás quando de passagem pelo deserto. E da raposa que ele cativou a pedido.

Os meninos se interessaram mais pela história do deserto, do que as dos outros mundos, porque pessoas, baobás e rosas eles conheciam, mas um lugar vazio, só de areia, era mesmo fascinante, ainda mais com um avião enguiçado. Quanto ao assunto da raposa, eles divergiam. Miguilim dizia que ela é um animal muito esperto e achava que o cativado, afinal, tinha sido o Pequeno Príncipe. Para Dito, a amizade não vem do hábito, mas da alegria de estar junto.

O Pequeno Príncipe refletiu que os dois tinham razão, percebendo-se abalado com a argúcia dos meninos. Eis que chegara a hora de seu aprendizado.

No ribeirão, os meninos lançaram seus barquinhos às mansas águas.Tinham esculpido com canivete e ficaram divertidos com o resultado do engenho. Daí, Dito era um tal ‘Capitão Maior’, Miguilim o ‘Audaz’ e o Pequeno Príncipe, o ‘Vagante’.

Quando, de repente, o Capitão Maior e o Audaz saltaram no rio seguindo seus barcos, o Pequeno Vagante, atônito, ficou sem ação. Os meninos chamavam-no em vão, até perceberem que ele não sabia nem nadar!

À tardinha, já os três faziam estripulias nas águas, cachecol e casaco largados à margem.

Tudo podia ser, quando Dito e Miguilim viram que seu pai já chegara em casa e havia todo um silêncio. O Pequeno Príncipe estranhou a súbita aflição deles, mas nada falou.

Deixando-o, seus amigos entraram de mansinho, mas logo ouviam-se gritos e choros. Refugiado junto ao seu carneiro e pingo-de-ouro, o Pequeno Príncipe tentava pensar a situação e tudo o mais até ali.

Um céu inteiramente estrelado recompôs a segurança do Pequeno Príncipe e ele adormeceu ao relento. Foi despertado por uns coquinhos que deliberadamente atingiam sua cabeça ao que ele identificou, acertadamente, ser um chamado dos meninos.

O pai era odioso e não podia ser perdoado, dizia Miguilim. Dito encolhia-se às palavras sinceras e raivosas do irmão. O Pequeno Príncipe podia ver, chocado, as pernas vergastadas dos amigos e chorou. Não conhecia, nem compreendia aquela violência e queria, ah como queria, que ali estivesse seu amigo aviador para consolar os três e arquitetar algum plano, talvez partirem em seu avião.

Sem dúvida, de todas as pessoas absurdas que visitara em seu giro pelos planetas, aquele pai era a total aberração. Soube das brigas frequentes que prostravam a mãe por dias e amedrontavam as crianças e até os bichos da casa. Mas havia um tio, irmão do pai, que era amistoso e próximo, o que às vezes compensava em alguma medida aquelas invectivas.

Os meninos lamuriavam em sussurros, até que ouviram os movimentos do pai saindo a cavalo; amanhecia.

Aquela partida destravava tudo e todos, deixando a luz do sol animar o vulto das coisas. O Pequeno Príncipe queria estar alegre pelo novo dia solar, mas inibia-se diante da situação vivida pelos amigos e surpreendeu-se consigo mesmo. Seu eu retrocedia.

Logo surgia a mãe a consolar os filhos, abraçando-os e beijando-os, sem palavras, uma vez que não havia o que dizer de tamanho certo. O Pequeno Príncipe, amoitado, do lado de fora, desejou também o consolo, abraços, beijos e ternura de uma mãe, em quietude.

Estar alegre por dentro, mesmo com as coisas ruins, era a chave mestra da vida, que Dito, sem revolta, convicto, apresentava a Miguilim, fazendo com que algo profundo dentro do Pequeno Príncipe revolvesse. Melancolias, medos, perdas, enganos, saudades ocupavam espaço em seu coração, devastadores, como os baobás. Era preciso desalojar esses sentimentos, instalando a alegria.

Os dias seguintes seriam incrivelmente intensos, cheios de engenhos, diversões, comilanças, cumplicidades. O Pequeno Príncipe estava mais gordinho, seu casaco mais justo e o cachecol um tanto desfiado. Tinha juntado um montão de pedrinhas, coquinhos, folhas, raízes, penas, gudes, cascas de buriti, barquinhos.

E, naquela tarde, enquanto viam o majestoso por do sol, disse que iria pegar o carneiro e retornar ao seu planeta, pois havia um sertão de coisas a engendrar por lá e a hora era favorável. Combinaram códigos de sinais para conversas de lonjuras, até para quando e se chovesse muito. Apontando para o céu, mostrou mais uma vez a fácil localização de sua casa, o Asteróide B 612 e todos acenaram exultantes para o alto. E mesmo Dito gritou “EI, GENTES DO CÉU, UM DIA VOU AÍ !”

Resolveram apostar mais uma corrida até o esconderijo e dispararam. Mas, era só para disfarçar, desapertar seus coraçõezinhos, -que toda despedida dói-, e armarem a chance para que tudo acontecesse suavemente.

De fato, o Pequeno Príncipe ficou por chegar por último e virou fantasma.