Quando tempos de sezão

Não sou surda, só me faço, às vezes, para me poupar. Acudir dois esquálidos  é caridade demais, sei. Veio a peste e Sarapalha desmanchou-se, como se fosse cidade de mentirinha. Todos partiram pelas próprias pernas, deixando para trás os seus enterrados. Esta desolação que se vê. Num presta relembrar as desgraças, aviso que dou a quem sirva. Mas o que desregula essa história toda, – assunte bem e faço-lhe distinção, – é o que resistiu à peste. Minha pessoa não entra no cômpito, que já sou sobra da escravidão, peste das maiores. Os dois primos aqui juntos estão com os dias contados, tem as febres, tremores e frios da maleita. Então, veja assim: desempestada, eu não tinha precisão de ir e os dois, tão embotados de dar dó, nem se aviaram. Cozinho feijão, capino o mato, apronto café e levo água, sempre pedem água, muita água, por causa da febre. O milharal alcançou a porta da cozinha e, dois passos, é colher. Só sabe das horas aqui o jiló, que se roça e coça as bernes e tem os tempos certos de acordar e se espichar, rondando o cocho velho em que os primos sentam toda vida. Agora um deles vai se embora, expulso. Por causa de confissão. Nem precisava, que aqui nem sobrou mandato de absolvição, pois o padre Diomedes foi o primeiro a morrer pela água benta contaminada, nem descreio. O caso todo começou com a fervura da febre que fez o patrão destrambelhar de falar daquela Luisa mulher dele, que fugiu com um boiadeiro, casados só contava três anos. E falava dos olhos e a graça dela, da tristeza sofrida, que chorou escondido, da saudade e trolóló. Que não perseguiu os fugitivos, para descumprir o dever de matar a mulher também. Lobrigou as mágoas, assim no todo desvario. Fincou que podia ela voltar e ele até sarava. Logo vi que essa maleita, primeiro entortou a cabeça de um e logo alcançou a do outro e que a sezão dos dois primos, não é a mulher dos brejos feita bonita feiticeira, como disse o doutor quando padeceu a febre, mas é a única e mesma mulher Luisa. Na vez do outro variar, veio tudo abaixo. Aquele um despejo de lembranças cruzou com as deste, guardadas a sete chaves, destravando a consciência. Aí, só fez resumir que também sempre gostou da mulher do primo, em silêncio, com pudor e respeito e que, sim, ali foi trabalhar e morar só para ficar perto dela. Isso foi a picada de cobra que o patrão sentiu e gritou e eu mesma sofreguei e o jiló estremeceu. A cobra era a traição e o primo foi expulso, como na história do paraíso, sem prazo algum, definitivo. Mas se o primo é um tentado inocente, como nós todos, que eu sei, valha-me N. Sra. da Conceição! Desde a chegada dele aqui, dei rédea no reparar seu jeito apessoado e os olhos mesmo caídos nela, mas era o amor suspenso em silêncio, que estaca diante da porteira. Saber ela sabia, que mulher sempre apalpa de longe essas coisas e até se avulta; e foi assim naquela vez, pegando os olhos dele espalhados nela, que ditou conselho, com riso malícia, que ele precisava era de campear noiva. Se a história desse outra, e ela nem não fugisse com o boiadeiro, não era para o primo ir-se de pronto, mesmo definitivo embora, antes tarde, para fugir da tentação? Foi ficando era para sofrer igual santo, ou vadiar inocência provisória? Mas depois que ela se foi, ele continuou na fazenda. Podia ser já a fraqueza nos ossos de não querer mais nada. Ele jurou que ficou foi por estima ao primo. E adiantou nadinha. Que o patrão embrulhou tudo como caso de traição, antiga, ensaiada e esperançada. Luz de meus olhos, que o primo pagou o pato no lugar da Luísa, isso que foi. Os primos ficaram sem a mulher, a saúde e a amizade. O jiló late, choraminga e pateia descorçoado, sem saber para que lado abana o rabo, se do ficante ou do retirante. O primo parte parecendo um espantalho meio vivo, fazendo avoar os passopretos e, logo adiante, fica sentado lá, varapau seco no meio das folhas secas, com tremor do acesso, de dar dó, e parece que todo o mato tremula junto com ele, até meus olhos.

Agora me apoie, que digo e redigo, que sezão, misturada com negócio de mulher, feiticeira ou não, faz o estrago maior danado de brabo e não dá gastura da toda ruindade do ciúme e do orgulho vingador. Ela regurgita nas febres todo o que um campeia escondido. Ela é da triste solidão. Vai se consumir por si. Quando tudo acabar, vou chamar alguns daqueles viajantes que passam lá embaixo e contratar completa limpeza, cortar o mato nas regras, cercar o milharal, livrando o chiqueiro, o curral e o eirado. Pode ser que muitos queiram mear e ficar no povoado. Tudo vai ser nos trinques, em bom proveito, até que eu viva, em merecimento.