Sanga Puytã Imaginária

Volvendo norte, passa por nosso derradeiro olhar a cidadezinha ainda de Sanga Puytã, à borda de um campo com cupins e queimadas, arranchada entre árvores queo vento desfolha. Diz-se que sua área é menos que a do cemitério. Apenas a gentepensa que a viagem foi toda para recolher esse nome encarnado molhado, coisa denem vista flor.”                                                                          (Sanga Puytã, Ave Palavra – Guimarães Rosa)

             “Se narrada, bela é a história, se imaginada, ainda mais” – Guimarães Rosa

Somente pelas veredas desbotadas de uma batalha esquecida é que se chega à inverossímil Sanga Puytã, a de uma flor vermelho água. Mas, atenção, é necessário um mapa espelhado, para que não haja um desvio irremediável.”

Marco Polo está atento para compreender as palavras asas do diplomata recém-chegado que, pela primeira vez, o farão ouvinte deslumbrado, livre das imensas fronteiras do Levante, das angústias do grande Khan e do seu próprio cansaço.

Seguir à risca o mapa, todavia, será inútil ao viajante dedicado a contar seus passos, os postos de guarda, abrigos, restaurantes, povoados, aferir sua bagagem. Ele nunca avançará.”

Um bom indício de rumo certo é pisar, entre pedras ruças, lascas cinzas de ossos. Restos da rota antiga de um destroçado regimento militar em retirada.”

Há que suplantar relatos de visões fantasmagóricas no caminho: vultos de soldados surtados de cólera, sedentos, abandonados pelos companheiros da guerra, implorando por água; assombração jovem de mulher preta, que rasga suas vestes em ataduras, para acudir os combatentes feridos, seu nome ecoando nos vazios ana, ana, ana…

Mais à frente, assustadora, surgirá em visão de miragem, o ‘Jardim’, oásis-laranjal, à entrada do qual o espectro de um rijo guia sertanejo, dito Lopes, dispõe-se a conduzir quem-quer a bom destino, pelas matas densas que só ele e os índios Cadiueus dominam.”

Vez ou outra, brota da terra um brilho, a ponta de um metal que é medalha, insígnia de alta patente, uma cápsula ou medalhão de identificação blindado, solados de botas, balas de chumbo enrodilhadas em raízes secas. ”

Quem vá pelos rios, soltas as mãos na contracorrente das águas ou, de tempo em tempo lançada a rede, pode aprumar o norte, conforme fisgue entre os dedos ou na malha, fragmentos ósseos já branquíssimos, humanos.”

Muitos que a buscam desnorteiam-se deslumbrados, em meio à luxuriante paisagem de Lauiad. Sítio de magníficos bosques, repletos de umbus balsâmicos espargindo perfume de suas flores abertas, piquis carregados de frutos, abundantes mangabeiras, campinas verdejantes, águas sinuosas do rio Aquidauana. Vista de longe, azulada, a serra do Maracaju. Lauiad, campo belo, em língua guaicuru.”

Além, sobrepujante, um verde de matas delineia os meandros dos rios Uacogo, Miranda e do Nioc, súbito entrevisto através dos taquaruçus nas altas ribanceiras, em seu leito de lajes de grés vermelho, talhadas pela correnteza.”

Marco Polo divagava longínquo, rememorando as intocáveis matas de Bauci, fincada por andas altíssimas trespassando nuvens, seus habitantes recusando-se a pisar o solo mantido intacto, tão só admirando-a telescopicamente, do alto reparando as folhas, formigas, pedrinhas e caracóis.

Há dois modos de indicar Sanga Puytã: volvendo norte, olhar retilíneo, na fronteira com cupinzeiros e queimadas, típicos marcos locais, eis a cidade em seu rosto. Ou, volvendo norte, olhar curvilíneo, a que tremeluz, incerta, entre os vãos das folhas balançantes das árvores, a total imaginária. Duas em uma, servem-se do mesmo cemitério de desmesurado tamanho, para espanto de quem, num só relance, ignora a parte difusa da cidade.”

Logo avistado o campo de cupins e, invariavelmente, as queimadas, poderá este viajante seguir adiante e encontrará certo e modesto acolhimento entre a gente simples dos sangapuytãs, uma caneca de água fresca e um bolo de milho.”

Aquele outro, tendo guardado no bolso um fragmento calcificado recolhido do caminho ou rescaldado do rio e, no lusco-fusco, entrevê a cidade entre as harpas das palmeiras e os ramos oscilantes das árvores, estacará no antesítio, repousará ao relento de estrelas e saciará a sede em águas cristalinas do riacho mais próximo. Vagarosa e imaginariamente, a cidade desabrochará em formato de nunca vista flor, pétalas carmim perene orvalhadas.”

Marco Polo, olhos perdidos em distâncias, caçava longínquas e desordenadas reminiscências. Já vira cidade igual? Onde Formato flor?

Repassava a cidade de sessenta cúpulas de prata, galo de ouro cantante, Dionira; a de escadas em caracol com caracóis marítimos incrustados, Isidora; as todas demais, suas torres de alumínio, muralhas, pontes levadiças, escadas, canais, placas pendentes, arranha-céus, birutas, mil poços, praças, esferas de vidro, palafitas, de bambu e zinco, sem paredes, só de encanamentos, varandas sobrepostas, de dupla face: um lado ladeiras em montanha russa, de outro edificações com mármore e cimento; Otávia, cidade teia-de-aranha…

Sorriu quando sua memória enfim pousou na ancestral cosmologia que descreve o mundo como uma flor de lótus de quatro pétalas. Uma terra cercada por rios, no centro da qual uma flor, disse.

Hasteou em sua pródiga imaginação, Sanga Puytã Flor sustentada por pequena haste que a eleva poucos metros do chão.

Sobe-se às primeiras pétalas por degraus em forma de grossos espinhos escalenos alternados.

Ao anteparo das copas semi desfolhadas e da treliça das folhagens, o visionário espreita a cidade.”

Ele podia ver as pequenas casas que circundam um miolo central, com plantações e depósitos. Sentia o dínamo social simplório sob o suave perfume exalado sempre às dez horas da manhã, por um invisível funil de ar.

Nos quintais, a luz do sol incide nos mantos de teias tecidos pelas aranhas e as mulheres, com agulhas e fios coloridos, ao modelo da trama radial aracnídea, fiam rendas, com raios partindo de um centro, ao modo de sol, rendas sol, nhanduti.

Lenda preciosa inspira a faina: que noiva indígena guarani, desolada, vela noite adentro o corpo de seu noivo morto por uma onça e, ao amanhecer, maravilhada com a luz do sol refletida no manto de teias de aranhas, dedica-se a tecer uma mortalha belíssima para cobrir seu amado, copiando das pequenas aranhas a teia, nãnduti.”

Nesse embalo, Marco Polo também parecia ouvir um jovem engraxate entoando uma folclórica canção sobre uma donzela bordando um lenço para a rainha, às margens do rio.

Não sabe por quanto tempo observou a cidade no silêncio em que ele e o diplomata conservavam, ambos ouvindo ou imaginando ouvir as palavras um do outro.