O homem da ilha

Quando retornei à ilha, as coisas já não foram as mesmas. Certo, os meus receberam-me como um ilustre e estavam orgulhosos. Outros desdenhavam-me. Mas a grande maioria rejeitava-me. Pois o gentil cônsul brasileiro que me distinguira com sua atenção pessoal, nos trâmites de regularização de meu passaporte, havia acionado um interesse invulgar sobre minha pessoa, até então viajante comum e anônimo pelo Brasil.

Percebera sua estupefata surpresa ao saber que, um seu concidadão, levantava-lhe, ali, de chofre, poeira histórica secular. Pois, ainda que eu, brasileiro nato, mero comerciante, voltava ao país natal para, principalmente, encaminhar a expansão de meus negócios, aos seus olhos, compreendi, eu vinha, incrível, da ilha do exílio bonapartista e, então, o vulto de Napoleão instalou-se entre nós!

Sua aguçada e afável curiosidade dobrou-me e passei a contar-lhe os fatos antecedentes que me levaram ao paradeiro ilhéu, quando então, jovem, eu seguira um geólogo explorador e, depois, nas paragens da ilha, me decidira por ali ficar, por amor a uma nativa.

O entusiasmo que ele continha nos comedidos gestos, traia no brilho dos seus olhos, sobretudo ao ouvir-me brandir o sucesso do meu comércio entre os demais negócios tocados por monopólios que dominavam aquela pequena ínsula. Neste ponto reside o nó da questão.

Ao seguir explanando-lhe, já desenvolto, a dinâmica comercial do lugar, as vantagens e as engrenagens envolvidas, comentei as contingências que levam estrangeiros a liderar em terras alheias, como, aliás, se dava em nosso território e nós, uns moles, apenas a isso assistíamos, ao que exemplifiquei com o meu próprio caso, de ser, na ilha, o estrangeiro explorador bem sucedido.

No embalo desta fluida conversação, o gentil cônsul propôs-me ser entrevistado por jornal local, como para ilustrar os brios nacionais, já que se tratava de um brasileiro, único estrangeiro em tão histórica ilha, rico e próspero, ainda que meu novo empreendimento visasse terras argentinas.

Sem conseguir ali me desvencilhar da lábia da entrevista, após os telefonemas que o cordial cônsul distribuiu para tanto, despedimo-nos simpaticamente.

Não me dirigi ao hotel do largo de São Francisco onde me instalara e, sem dar baixa, livre, não seria ali encontrado por nenhum entrevistador, jamais.

No Brasil, tudo o que veio a público a respeito dessa minha passagem burocrática pelo país, emanou da narrativa que o hábil cônsul, homem de letras, publicou em jornal carioca, em forma de uma crônica e foi um sucesso. Fizera um resgate saboroso da autoestima pátria, num ambiente exótico e ademais no solene palco de um dos grandes capítulos da alta História ocidental. Ficávamos reposicionados, assim, junto àquela recorrência histórica e com altos créditos. Falar da ilha seria não mais evocar exclusivamente Napoleão, mas também o brasileiro rico de Santa Helena!

Conquanto, sob um prisma literário, tudo se transforma e ilumina, o fato é que, tirante a fidelidade do relato quanto às minhas viagens com o geólogo, meu casamento, permanência e próspera mercancia na ilha, a ênfase da estória toda, ao final e ao cabo, foi atribuir-me o veredicto de que os brasileiros são moles, deixando-se explorar por estrangeiros e de que eu, então, gabando-me, enquanto estrangeiro na ilha, invertia desaforadamente a humilhante sina.

Ou seja, de volta ao lar, passei a ser visto pelos ilhotas como um explorador predatório e vaidoso, tendo a fama atravessado o Atlântico antes de meu próprio desembarque, pois os telegramas enviados pelos jornalistas brasileiros eram incessantes, buscando-me.

Mas não só isso. Meus negócios na ilha sofreram um sério abalo, causando-me grandes prejuízos que, felizmente, consegui estancar graças à exportação de lagosta para a Argentina, providencial etapa compensatória da bendita viagem.

No final de sua crônica, o amável cônsul mostra-se frustrado com o nenhum vestígio de minha entrevista em jornal, lamentando não ter, – para minha sorte!, – registrado maiores dados sobre mim, afinal conformando-se e aceitando que situações inverossímeis assim, se esvaem, simplesmente, sem ecos…