Eu, Subles

 

Alguém tira o cadeado. A porta metálica gira sobre seus goznes oxidados – faz um barulho infernal. Uma corrente de metal se desliza e bate contra a porta também de metal. Entram dois homens do tamanho de um armário duplo cada um. Uma luz amarela e pálida, como os habitantes dessa cadeia ou seus captores, se acende em algum lugar que não identifico.

– Chegamos a la luna, comunista hijo de puta!!!

Lembro que lembro que estou preso na Argentina, a mercê dos carrascos, e quero responder que filho da puta tudo bem, mas que é um erro se identificar com o suposto sucesso dos EEUU porque os interesses deles não coincidem com os nossos, eles querem somente nos explorar…

Não dá tempo. Já me havia dado conta de que os armários não desejam o diálogo, não escutam, só perguntam, a discussão armários/presos políticos ficará para uma próxima encarnação.

Tento dormir novamente, tenho frio. Há barulhos de metais contra metis ou contra corpos, uivos desesperados, risos de prazer dos torturadores, aletear de pássaros noturnos, trovoadas e o som persistente de uma chuva fina. Por que estou preso e sem água nem comida na Argentina em 1969 se deveria estar aqui, em São Paulo, trabalhando com literatura ou usufruindo dela. Sonho: É que estou em uma novela gótica, sonho que penso, mas em seguida me corrijo, falta o miar do gato anunciando a horror, portanto não há novela gótica. Sonho que estou na casa que alugava na Ilha Bela quando era jovem e estar no mundo era um prazer infinito. A porta se abre novamente com estrépito. Os armários me entregam um telefone fixo  – parece mentira, mas em 1969 não havia celulares;

– É para que te despidas de tua gente- esclarece um dos armários, Antes de sair e aproveitando que já estou no chão, o outro armário me dá um chute nos rins. Depois me deixam sozinho. Evidentemente não vou usar o telefone – em 1969 não havia celulares, mas sim escuta telefónica.

Acordo bruscamente banhado em suor frio. Não há 1969 nem lua nem estou em prisão e sim na cama do meu quarto na minha casa. Preciso falar com Andrés, há algo muito importante que me esqueci de dizer. Onde estou, quem sou, me pergunto. Faz muitos anos uma garota disse que eu era pouco prático, excessivamente subliminar. Vou te chamar Subles, disse e pegou: em poucos meses todos no colégio me chamavam Subles. Na Divisão de Fronteiras onde trabalho somente me conhecem por Subles

Acordei porque o telefone fixo de minha casa está tocando. Viro para o outro lado mas não vou conseguir dormir mais.

Levanto, Atendo o telefono, digo aló.

Me responde um murmúrio arrastado e uma vozeria em uma língua que não existe.

Subles? Pergunta uma voz desconhecida, impregnada de um sotaque que não consigo localizar. É um homem jovem

Subles? Repete.

Pois não.

Está bem?

Sim , por quê?

Por nada, ligamos por verificação. Nome da mãe do pai irmão cpf  rg e data de nascimento.

Tudo junto?

Silêncio,

Repondo o interrogatório porque algo me diz que uma negativa seria pior.

Bem a segurança já foi efetuada. Vamos ligar de novo, no máximo até amanhã. Esteja preparado.

Cheguei a perguntar que significava estar preparado mas a voz desapareceu, Escutava-se uma espécie de call center de todas as línguas, das quais consegui entender apenas algumas palavra soltas. A Babel das Línguas, O Grande Sertão, o call center dos meus pesadelos.

Acordei e tomei café.

Abri o celular e liguei para três ou quatro amigos. Estava muito inquieto, precisava conversar. Tive uma ideia. Minha secretaria eletrônica havia registrado o número do call center.

Liguei. Me atendeu uma voz também jovem de mulher.

Recebi uma ligação, estou retornando.

Nome?

Subles

Subles?

Sim.

Obrigado por esperar. Está na lista de espera. Falta pouco para chegar sua vez. Teve sorte.

Por qué?

Havia somente um Subles. Você.

Meu telefone não funciona mais.

Não é isso.

Que é?

Tenho aqui registradas as pessoas para as quais ligou, Não vão poder atender.

Por quê?

Estão aqui conosco.

Quero falar com eles.

Não entendeu? Estão aqui conosco. Já chegaram.

Me dei conta. Perguntei: Nunca mais?

A voz desligou.

Meia hora depois o telefone tocou novamente.

– Subles?

Sim. O vozerio na linha era literalmente infernal.

Já saiu o grupo de aqui. Estão na rua.  Em poucos minutos iremos a buscá-lo.