O audaz Navegante

Minha partida a muitos confundiu. Lenços enfunados, amante devastada, sentida.


Mas não.


A Aurora-deusa desperta meus sentidos nesta manhã. Ecos distantes de voz brejeira tomando-me o leme para perder-me, sem rotas, ao sabor das ondas, por muito tempo. Recordo.

Exceto o farol, que sempre esteve ali, tudo o mais foi desvario.

Águas sem antiguidade, em bel prazer de encapeladas ou bonanças, ora fincando-me ao mastro, coração na boca, ora espiando-me sentado na borda da nau, contemplando um albatroz.

Poseidon soberano, a tudo permitia, curioso do ímpeto que fazia a um intrépido atravessar seu reino.

Quando estourou o motim, a maioria estava bêbada e o capitão desfalecido foi içado ao mastro,logo rodeado pelos corvos.

Horrorizado, esgueirei-me, fazendo-me trôpego na barafunda maruja e, sob as lonas encarquilhadas, manejei as amarras, resgatando o capitão, inteiro revivido e irado.

Julgamento sumário, aprisionados os desordeiros e incontinenti deixados em terras de ninguém, nus.

A moça do cais de Anastácia enfeitiçou-me, ninfa enviada por Poseidon para turbar-me. Dias, semanas, meses, não sei ao certo, de delícias, escravo inteiro. Aqui, este meu braço estibordo tatuado para sempre: um coração flechado com nossas iniciais.

Os náufragos que recolhi, suas histórias febris; os negociantes de voz estelionatária; os contrabandos; as rixas por jogo, por mulher, por cordame, por isca, por bebida, por qualquer trunfo à vida embrutecida, de abandono.

Carcaças de peixes por onde tropecei e me quebrei, cumprindo quarentena em talas rústicas de madeira e ataduras de trapos de velame esgarçado, a dor contínua domada por disciplinada embriaguez.

A pérola rosa que encontrei, trago comigo e o que me vale.

Minha pele queimada, mas não ressequida, besuntada de gorduras. A envelhecida cicatriz na coxa.

O ardil contra mim tramado no velho ancoradouro e que o menino me revelou em troca de minha história, a começar pela tatuagem, não a do coração flechado, mas a da caveira. Sobredei-lhe minha faca.

O azimute imutável, horizontal, estire-me eu de bruços, sob o sol, ou de costas, ao luar, nos longuíssimos dias e noites de águas e céu.

As oferendas lançadas ao convés, flores,folhas, ramos, gravetos, moedas, grampos, fitas, gosmas, cuspes, navio estrombótico, todo mensagens. Todas colhi, generosamente.

Avistei por de longe o fabuloso rio de três margens, com pontinhos longínquos de pessoas acenando a um nada.

Anotei as histórias mirabolantes dos velhos marinheiros, todos próprios de si, orgulhosos de suas vilezas e feitos. Traçaram-me com os dedos a cartografia dos ventos.

Perambulando nas ruelas de escadas de Zaíra, cidade da memória, em companhia do capitão, entrei em transe absoluto, assombrando os pescadores com as revelações heroicas de meu remoto passado e profecias ininteligíveis.

Abaladíssimo após o torpor, cambaleei até o navio sentindo-me extraordinariamente cansado e velho.

No Diário de Bordo, a passagem por essa fantástica cidade registra apenas as suas singularidades e as de seus habitantes. Mas é no Livro Reservado das Expedições, que vem transcrita a minúcia do acontecido, em páginas cuidadosamente lacradas, após o capitão revelar-me imitando minhas próprias palavras emocionadas, o que, transido, eu delirara em praça pública, arauto do destino que me coube seguir, desde sempre.

As cartomantes dos becos portuários louvaram minhas linhas, vendo nítido o deus soberbo que me protegia. Assim, disseram, eu incólume seguiria, “ao contrário de Flebas, afogado, jovem marinheiro, belo e forte como tu”.

Se e quando eu regressar ao porto inicial, no desembarque total, esférico, ambições esquecidas, farei aprumar novo navio que singre em águas novas as minhas tatuagens.

PÁGINAS LACRADAS

Do Livro Reservado das Expedições – Delírio do Audaz Navegante

Quantas guerras librei, quantas batalhas venci, quantas oportunidades perdi de morrer de morte rápida, no passado de Troia e no futuro das guerras mundiais entre nações inteiras.

Porque não desisti de viver, porque não cruzei o caminho de um obus, de um sabre, de uma baioneta, porque não entrei em um submarino que seria logo afundado – quando os submarinos perdem a batalha, eles também são afundados? Mais ainda? Ou, pelo contrário, feridos de morte voltam à superfície pensando que dela nunca deveriam ter saído? Como se sabe quando um submarino é derrotado?

Como se sabe quando termina esta vida, minha última reencarnação de acordo com os vaticínios da adivinha?

Desde este lugar do mastro onde estou amarrado, vejo luzes de cidade ou miragens úmidas, onduladas, de buritis, pássaros, bois e gente forte, belezas ásperas do majestoso Grande Sertão, – singrado e abarcado pelo audaz VIATOR, preferido de Cronos, – mais real que qualquer das realidades, vejo a extensa praia de onde, por Poseidon, parti eu, também um audaz, que fez a guerra de Troia, e venceu, que combateu os persas  e venceu, que combateu os povos da Índia e venceu, que combateu mil motins, outras mil revoltas e venceu, que foi parte da escolta de Alexandre e do César e com eles conquistou o mundo conhecido, deixado pelos deuses para usufruto do homem e, como mais ninguém, posso ouvir agora, o Canto das sereias sem sucumbir, esperando em breve livrar-me o Amanhã”venceu, que combateu os povos da Índia e venceu, que combateu mil motins, outras mil revoltas e venceu, que foi parte da escolta de Alexandre e do César e com eles conquistou o mundo conhecido, deixado pelos deuses para usufruto do homem e, como mais ninguém, posso ouvir agora, o Canto das sereias sem sucumbir, esperando em breve livrar-me o Amanhã”