O Trem de Hans Helmut

Há uma fresta entre as tábuas. Por ali se filtra uma luz laranja que às vezes estende uma imagem invertida na parede oposta. Hans Helmut abre um olho, se estica, abre o outro olho. Sente duas respirações, a de Albertine 1 agitada, entrecortada, deve estar sonhando ou tendo um pesadelo. A de Albertine 2 é calma, acompanhada de um sussurro que não chega a ser ronquido. Hans Helmut se sente a pessoa mais feliz do mundo. Estou feliz, articula o pensamento, primeiro em alemão, em seguida em francês. Ele sempre quis estar na cama com duas mulheres, desde tempos imemoriais, desde seu duplo Édipo com sua mãe e com sua avó materna que também o cuidava. Pena que Hitler exterminou a psicanálise como prática corrupta e degenerada, e que os psicanalistas emigraram para os Estados Unidos. Desde pequeno, pensa Hans Helmut, achou que devia haver uma organização, uma previsão em assuntos de sexo. Hans Helmut sempre quis participar de uma espécie de orgia organizada, com regras claras, onde ninguém se prejudicasse e todos fossem felizes. Os ciúmes simplesmente desapareceriam pela ausência de função, uma vez que todas as atividades sexuais seriam abertas ou em grupo e a clandestinidade amorosa se extinguiria. O que menos esperava é que suas fantasias se materializassem na França ocupada, no começo da guerra – guerra? – e sem que tivesse que pronunciar palavra outra que “sim” em alemão e francês, nem usar de outro afrodisíaco que o formidável estímulo erótico do uniforme do vencedor – para muitas francesas, irresistível. HH caminhava pelo Jardim de Luxemburgo observando as esculturas pelo puro prazer de receber o sol cálido no rosto e sentir que seus músculos lhe respondiam. Estava tomado por uma sensação de profundo bem estar. A guerra logo terminaria com a vitória da Alemanha, com um custo em vidas ridiculamente baixo. O pacto com a União Soviética estava em vigor e não era possível nem imaginar a derrota de Hitler em Stalingrado, a batalha que matou milhões de pessoas, entre elas nosso herói.

Foram elas que o abordaram no Jardim, e quase imediatamente propuseram ir à casa de campo de Albertine 1, ou Albertine 2, Hans as confundia.

O diálogo na praça:

-Que homem mais elegante! Prazer, meu nome é Albertine.

– Também me chamo Albertine.

– Prazer, sou Hans Helmut, tenente primeiro da Wehrmacht

– E essa Medalha, bonitão?

Hans Helmut fica quase que em posição de sentido.

– Pela atuação em combate! – que combate? pensa.

.- Adorável…!

– Estamos saindo para a casa de campo dela.

– Fica a meia hora de Paris.

-Mas, querido, não temos gasolina,

-Nem comida.

– Você resolveria esses detalhes para nos?

– Prometemos te dar prazer, muito prazer, mais do que jamais imaginou.

Hans Helmut sentiu uma ereção poderosa por baixo da calça do cobiçado uniforme. Seu ajudante conseguiu a gasolina e encheu o tanque do carrinho sem fazer perguntas. Ele mesmo recebeu uma cesta com pão, salame e uma garrafa de vinho do bistrô onde almoçava todos os dias.

Duas horas depois, estavam na casa de campo.

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O problema é o imperativo categórico, pensa HH, de Kant.

E em seguida pensa também que o momento não poderia ser mais inoportuno para lembrar-se da Filosofia.

O trajeto até a casa de Albertine 1, ou 2, foi demorado. Pelas estradas circulavam tanques e outros veículos militares que tinham prioridade na passagem. No fim, estacionaram o carro oculto numa mata, uma das Albertines tinha marido ou noivo, HH não entendeu direito, que havia sido mobilizado. Sentaram à mesa, comeram e beberam metade do vinho. HH tomou pouco, não queria nada que alterasse a energia que iria precisar. E agora, disse uma das Albertines, você senta nessa poltrona, frente ao sofá onde vamos ficar as mulheres.

É verão, faz calor, as Albertines parecem desejosas de tirar toda a roupa. Antes de ficar nuas, diz uma delas, as caricias.

Começam com suavidade. Uma vitrola toca Os anéis dos Nibelungos de Wagner; depois, Strauss. À medida que o tempo transcorre o ritmo torna-se agitado, frenético – as duas, antes sossegadas, estão agora inquietas. Alternam-se nos malabarismos do amor, uma saboreando o gosto da outra. Uma delas mostra um pequeno consolo que passa a utilizar no ânus da outra. Arrancam a roupa. As duas não se soltam, em um êxtase de mãos, línguas, abraços, gemidos e às vezes gritos de prazer.

No começo HH ficou muito excitado. Mas agora, depois de um tempo de não receber atenção das mulheres, começou a sentir certo cansaço, desinteresse. Foi pelas brechas de essa diminuição do desejo que Kant apareceu. HH estudou Kant e toda a filosofia alemã na escola. Não estudou nunca filosofia francesa, por exemplo. Não conhece Sartre, porque é francês e porque ainda não escreveu a parte principal da sua obra. Sartre foi soldado, não escreveu por enquanto sobre a ocupação alemã que HH protagoniza. Em contrapartida HH sabe sim o que é o imperativo categórico. É o imperativo categórico que o leva a pensar na sua mulher, grávida, que o espera.

A solução é incorporar sua esposa grávida à orgia.

HH segura delicadamente sua mulher por trás em quanto sussurra palavras no seu ouvido – você vai ver, você vai gostar.

Funciona. As duas Albertines se aproximam da mulher de HH, a acariciam, chupam-na gentilmente. Rapidamente, a mulher de HH tem o orgasmo mais deslumbrante da sua vida. Quando termina de gritar de prazer se vira para HH

HH chega a pensar que três mulheres com ele, uma delas sua legítima esposa, é demais.

Se houvesse outro homem, pensa – e a ideia o excita novamente.

HH deixa de pensar no imperativo categórico porque o desejo pelas mulheres, de um homem, o urge e tenta decidir qual das três irá penetrar primeiro.

Na verdade deseja as duas Albertines. Sua esposa continua em Hamburgo esperando e sua presença na orgia é apenas uma imagem utilitária de HH para afastar o Imperativo – ou um mero recurso ficcional.

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É um dia ensolarado de primavera – faz calor no trem dos prisioneiros franceses, mas não muito, especialmente quando o trem se movimenta e o ar entra com violência pelas portas abertas dos vagões. Entretanto, às vezes o trem para, para dar passagem a outras composições – prioritárias – conduzindo tropas ou mantimentos para o exército. Na verdade os prisioneiros franceses são a última das prioridades da planificação  alemã. Estão sendo conduzidos a um campo de semi concentração para ser libertados dali a alguns dias- os que não tiverem a ficha suja na polícia francesa por comunistas ou homossexuais.

Os guardas de Hans Helmut, e o próprio HH, aproveitam as detenções do trem para dar uma volta beirando os vagões e fazer de conta que possuem alguma função. Depois de algum tempo, a composição levando tropas ou comida e munições passa, e HH e seus homens voltam ao último vagão onde continuam jogando baralho.

Durante uma dessas inspeções a pé, HH passa do lado de um jovem. Gosta do seu rosto. Pergunta o nome. Escuta Pierre. O prisioneiro pergunta o nome dele. É uma impertinência, mas HH responde. Olham-se em silencio. Pierre sorri. HH também sorri. Tira um maço e convida um cigarro. Pierre aceita e acende com o isqueiro de HH. Os dois simultaneamente fazem uma careta. Pierre devolve o isqueiro. HH continua sua ronda. Pierre viaja sentado com as pernas para fora do vagão. É contra as normas, mas HH releva. Ninguém está interessado em fugir – nem em cuidar com rigidez dos prisioneiros. A França está ocupada. Os franceses se renderam quase sem lutar.

Pierre senta-se à mesa. Há salada de berinjelas, sua favorita, dois tipos de peixe cozidos e um frito, arroz fumegante e vinho branco sauvignon. Pierre estende o guardanapo de linho sobre suas pernas e coloca na boca a primeira porção de berinjelas. Que estranho, pensa, não tem gosto e imediatamente se da conta de que a comida desapareceu da sua boca, da mesa. Não tem tempo de continuar pensando porque uma explosão sacodiu o trem, os vagões freiam bruscamente e há um estrépito de apitos, gritos em alemã, lamentos em francês, latidos de cachorros grandes, vozes de mando e uma exclamação que percorre a composição – sabotagem, sabotagem. Pierre acorda bruscamente, com medo, com fome. Homens de Hans Helmut fecham as portas dos vagões que estavam abertas, outros abrem as que estavam fechadas. Como dirá Sartre, agora que a guerra acabou é a guerra. Do vagão de Pierre, os soldados alemães extraem um grupo de cinco prisioneiros – para queimar eles vivos como na frente oriental após 1941? Para fuzilar?

Pierre pensa, tenho que fugir. Os guardas acabaram de abrir as portas. Ele pensa que sempre teve a sorte do seu lado. Pula e sai correndo em zigue-zague. Escuta as armas sendo preparadas e se joga numa valeta, A primeira rajada dos fuzis não o alcança. Desde a valeta observa primeiro as sombras e depois as silhuetas dos guardas de HH. Um deles se aproximou, aponta uma metralhadora e diz umas palavras incompreensíveis em alemão. Chegam mais soldados alemães. Pierre é arrancado bruscamente da valeta. A prisão, a tortura e provavelmente a morte nas mãos de Gestapo é o que o espera. Desde dentro de uma sombra HH ordena atirar. O soldado da metralhadora atira. Pierre sente as perfurações das balas. Seu corpo explode por dentro e depois a escuridão é total.