O Estrangeiro foragido

Uma aura de mistério e importância cobria o trem quando, em incertas manhãs de terça, embarcava o estrangeiro foragido. Quase sempre fazia o percurso inteiro, até Monte Azul, hora e meia, que o tempo alongava em solene.

No vagão dele, falava-se baixinho, por temor e reverência. Os que ali entravam e o viam, logo se assentavam sem balbúrdias, disciplinadamente. Um e outro abria-lhe o olhar num ensaio indeciso de bom dia. Os que desembarcavam, soltavam um ar de alívio, como que escapando de um destino.

Dizia-se que desertara de um exército na guerra, depois de ver explodir uma escola e se tornara um revoltado vingador.

Ou, que matara alguém por dívida, ou que teria sido por defesa. Mas, todos se congraçavam na ideia fantasiada de que ele era um fugitivo.

Quando de sua chegada por aquelas bandas, fez da estação o marco zero das muitas direções erráticas que seguiria, desde a provisória pensão, até fixar moradia.

São desse tempo as palavras economizadas de sua boca, que revelaram um rústico sotaque francês.

O que mais dava peso às sombras de seu passado e intrigava o presente, era o fato de que estava sempre absorto em livros de suspense, que depois, sem mais, atirava pela janela.

Pérolas embaçadas”, “Entre quatro paredes caiadas”, “O sonho ignoto do Dr. Fausto”, “Concerto desafinado” tinham sido resgatados dos arremessos sem mira, que plantavam livros em matos, quintais, ou afogavam em brejos.

Aconteceu, então, que a “Saga Prodigiosa” caiu rente ao muro da casa da curva, onde o trem vagarosamente serpenteava entortando os vagões. Ali morava Marinho Crispo.

Naquela tarde, Marinho Crispo, ao fechar a janela da frente, reparou algo cinza esverdeado junto ao muro, que não poderia ser a Rugosa, sua velha tartaruga, já enfurnada no seu canto, debaixo do pesado cadeirão herdado de seu avô. Saindo ao quintal, avançou com uma vareta, logo dando-se conta, sorrindo, de que nada mais era do que um livro arremessado. A surpresa era que, ao lado do volume, achou meio enterrada, a bússola antiga que perdera. Entrou satisfeito, sacudiu com as mãos a poeira dos objetos, largando-os no cadeirão.

Enquanto cozinhava a própria janta, pensava nas esquisitices do estrangeiro ao atirar os livros pela janela do trem, concluindo que só poderia ser de uma raiva embutida pelos infortúnios do passado. Depois, olhava sua bússola, que lhe trazia boas lembranças do tempo em que andava pelos vastos gerais, guiando e acampando com engenheiros, veterinários, agrimensores, vaqueiros. Só não atinava como a perdera e porque fora parar ali, largada na terra, por tanto tempo, anos… Bendito arremesso do estrangeiro foragido!

A curiosidade é motriz e, como ficara num ânimo pimpão, Marinho Crispo pôs-se a folhear o livro, saltando as páginas, passando os dedos ligeiramente pelos títulos dos capítulos: “PROLEGÔMENOS”, “PRODÍGIO: CONCEITO BÁSICO”, “ACASOS e SERENDIPITIA” “COINCIDÊNCIAS”, “HISTÓRIAS PRODIGIOSAS”.

Já capturado pelos chamativos títulos, voltou ao início, lendo com calma o prefácio do livro:

Bona rerum secundarum optabilia; adversarum mirabilia.”* Sêneca

Há muito não surpreendem os acontecimentos que parecem escapar das leis da natureza, trazendo aos homens superações inimaginadas, conferindo-lhes força e poderes excepcionais. Capacidades físicas, intelectuais e espirituais aguçadas desafiam os limites humanos ordinários; assim também, poderes adivinhatórios e visionários.

O mesmo não ocorre com os eventos que envolvem coisas e objetos e engendram situações inusitadas, aparentemente soltas e desvinculadas, mas que, ao fim e ao cabo, selam rumos das gentes. Como se tais coisas e objetos, por si, dispusessem de uma motricium actio própria. O que, evidentemente, não passa de uma metáfora, pois é certo que os homens põem e dispõem.

Mas, aquela carta amorosa extraviada, que chega às mãos do destinatário logo depois que o mesmo desesperançado resolve dar fim à vida; um varal de roupas ao sol que despenca e faz a mulher sair correndo ao quintal para recolher as peças, quando, naquele exato momento uma telha que poderia matá-la se solta do teto sob onde estava; uma chave esquecida à porta, que nos faz dar meia volta e assim perdemos o ônibus, que acabou por colidir com outro veículo, resultando em feridos; e uma infinidade de coisas e objetos nos conduzindo, por assim dizer, a certos termos.

Você mesmo, quem nos lê, há de ter alguns exemplos próprios ou de alguém conhecido, em situações semelhantes, prosaicas, de coincidências, surpresas, perplexidades e descobertas, que, mesmo não sendo como a história daquele felizardo que atirou uma pedra e achou um tesouro, das mil e uma noites, ainda assim parecerá prodigiosa.

Esta obra faz uma síntese dos estudos e estudiosos que se detiveram na análise dessa intrigante questão, sob os vários ângulos científicos, psíquicos, religiosos, reunindo casos históricos famosos e de seus personagens.

Que a leitura seja proveitosa e que este livro, aos que e enquanto dele se ocupem, faça engendrar algo prodigioso benfazejo.”

Escarpa da Serra

julho/1957

* As coisas boas que pertencem à prosperidade devem ser desejadas; mas as coisas boas que  pertencem à adversidade devem ser admiradas.

 

Bem verdade, concordava Marinho Crispo. Não há quem não conte uma passagem ou acontecimento desses. Imediatamente, tirou do baú de suas memórias de infância, o caso do vaqueiro Porfírio que, atraído por um assobio anônimo, mal virara o corpo, dando três passos para sair do pasto, um raio caiu no lugar onde estivera. O assunto rendeu rodas e rodas de cachaça em torno do felizardo, salvo pela mão da sorte. Mais recente, no mesmo diapasão, deu-se com a dona Guida, costureira do outro lado da linha do trem, que, ao sair da cozinha para fechar a janela da sala em bateção de vento, deixou atrás de si o estrondo da panela de pressão que explodiu espalhando feijão pelas paredes, a tampa atirada ao corredor! Mão do anjo da guarda, diziam as vizinhas e todos.

Imerso nessas divagações, distraído, seu olhar pousou sobre a velha bússola e, só então, assombrou-se ao atinar que novíssimo prodígio acontecera com ele, ali, há pouco, quando o livro caiu exatamente no ponto em que estava a bússola! Sorriu com a proeza, ainda que, claro, não achara um tesouro, como bem ponderara o autor, mas aumentava a estatística em favor da tese e, melhor, dera-se bem, nenhum susto.

Ninguém sabia como agir naquela manhã de terça-feira, quando o estrangeiro foragido permaneceu de pé no vagão, ao longo de toda a viagem, nenhum livro sob o braço. Seus olhos corriam com as paisagens da rota habitual desfiladas nas janelas. Havia assentos vagos, mas ele fincara-se ali, alternando o peso do corpo ora numa perna, ora noutra e às vezes virando-se para ver a paisagem oposta; nenhuma impaciência.

O inusitado fato trespassou de vagão a vagão e o trem era todo um bulício. Talvez alguma dor ou incômodo para sentar-se, sussurravam alguns; outros com galhofa, diziam que o estoque de livros se acabara. Mas a versão aclamada e decretada foi que, sim, aquele era o Dia D, dia que o estrangeiro foragido encontraria seu passado. O único senão dessa aposta, era que o homem estava absolutamente calmo e sereno, o que não seria o esperado para um ajuste decisivo, depois de tanto tempo.

Eis que, de repente, o trem, como há muito não acontecia, parou. Com os solavancos e um falatório alto entre o maquinista e o cobrador, os passageiros que já se levantavam do chão, entre malas e embrulhos espalhados, punham as cabeças de fora das janelas e percebiam que a máquina descarrilara.  

Haviam acabado de passar por uma ponte estreita e isso fez com que o acidente fosse até abençoado, pois o pior seria terem todos caído no barranco chamado Espetão, que como o nome indica, tinha pontas salientes de rocha.

O estrangeiro foragido esfregava um dos braços, pois com o baque fizera uma torção forçada no corpo, mas não caíra. Desceu do vagão e aproximou-se dos demais que rodeavam o maquinista e o cobrador, demonstrando não se furtar a alguma possível colaboração. Não havia nada a fazer, apenas aguardar o pessoal da ferrovia que, chamados por rádio, resolveriam a situação. Foi sentar-se numa pedra e com um galho revolvia a terra. Agora parecia cansado.

A notícia do acidente se espalhafatou pelas redondezas. Obedecendo o dito popular quem conta um conto aumenta um ponto, falava-se em feridos, desmaios, costelas e braços quebrados. E também do ‘milagre’ de não terem caído na ponte. Houve até quem dissesse ter ouvido que a ponte havia despencado logo após o trem passar.

Para Marinho Crispo, havia que se aguardar, pois, como lera num dos capítulos da Saga Prodigiosa, com o tempo alguns sinais seriam decodificados e algo prodigioso viria à tona daquele acidente, cujos pormenores ao menos prometiam.

Já chegara ao capítulo das ‘Coincidências’, ainda vivamente impressionado com o da “Serendipidade” e as descobertas científicas.

Serendiptismo ou ainda Serendipitia, do inglês Serendipity, refere-se às descobertas afortunadas feitas por acaso. A palavra foi usada pelo escritor britânico Horace Walpole (1754) em seu conto persa infantil ‘Os três príncipes de Serendip’ (atual Ceilão), cujas aventuras resultavam em descobertas inesperadas.

São inúmeros os casos de descobertas afortunadas de serendipidade e, ainda que histórias saborosas, deixamos ao leitor o incentivo e prazer de buscá-las, limitando-nos neste humilde opúsculo, a citar apenas quatro nomes proeminentes na Ciência: o grego Arquimedes,os ingleses Newton e Fleming e o alemão August Kekulé.

Arquimedes (287-212 a.C.) foi um grande matemático e inventor grego. Enquanto tomava seu banho em uma banheira, repentinamente, encontrou a solução para o problema do rei de Siracusa: saber se sua coroa era realmente de ouro puro. Arquimedes a partir do seu corpo na água, descobriu a hidrostática, saindo à rua nu, gritando Eureka! Eureka! (Encontrei!).

Isaac Newton,(1643-1727) cientista inglês, é o pai da física clássica, tendo descrito a lei da gravitação, após uma queda em sua cabeça, de uma maçã de uma árvore, sob a qual descansava. 

Alexander Fleming (1881-1955) biólogo e botânico inglês,  ao sair de férias, esqueceu de colocar na incubadora uma bandeja de estafilococos. Enquanto viajava, os esporos de um fungo da sala inferior do seu laboratório voaram  para a sala de cima e quando ele retornou descobriu que o mofo havia limpado a sala de cima e quando ele retornou descobriu que o mofo havia limpado a placa que agora mostrava uma zona clara sem estafilococos. Era a descoberta da penicilina. 

O químico alemão August Kekulé (1829-1896), depois de muitos anos de pesquisa, pegou no sono em frente à lareira e sonhou com uma cobra que mordia o próprio rabo (Ouroboros), o que o fez entender a ligação dos átomos de carbono.

Marinho Crispo estava impressionado. Levantando-se do cadeirão para tomar um café na cozinha, logo reparou que a Rugosa estava virada de casco pra baixo, no quintal. Viu as horas e estranhou que nessa manhã ela saíra tão cedo de seu canto. Desvirou-a e voltou à leitura.

Nisso, esperando o resgate, um passageiro aqui e outro ali, iam dando voltas e se assentando nas proximidades do estrangeiro, ou sob um árvore, ou recostando-se num vagão. Não havia crianças nesse dia, ainda bem.

Para passar o tempo, alguns apostavam atirar mais longe as pedrinhas dos dormentes. Uma dessas pedras acertou numa casa de marimbondos, felizmente abandonada; outras ricocheteavam e se perdiam de vista. Mas a melhor pontaria foi a do maquinista que, mirando uma latinha de graxa previamente colocada num monte de palha, fez voar lata, palha e umas folhas de papel impressas! Com risos descontraídos, recolheram a papelada entregando-as ao estrangeiro, que agora também sorria.

As folhas estavam da cor da palha e manchadas, mas ainda lia-se  alguma coisa e era a respeito dos cristais de gelo e seus fantásticos desenhos. Havia inclusive uma esmaecida figura ilustrada.

Os papéis passaram de mão em mão e todos ficaram muito admirados, não só pela maravilha do fenômeno, mas porque o estrangeiro conversava naturalmente com eles. Nunca, provavelmente, veriam neve em cristais, que caia fartamente na terra daquele polonês; sim, o estrangeiro não era francês, como todos pensavam.

Naquela noite geou, como há tempos não acontecia ali.

Ainda bem que o resgate dos passageiros fora feito até a tarde e assim todos já estavam seguros e agasalhados em suas casas.

Mas que era uma coincidência, lá isso era, terem passado um bom tempo falando de neve e gelo, em razão daquelas páginas soltas resgatadas e agora essa geada! Assim ia falando e se benzendo a vizinha de Marinho Crispo, quem por dentro se regozijava, dizendo-se: Batata! Eu sabia!

No dia seguinte, ele saberia mais: o relógio da estação parara às 9:45, horário do descarrilamento, mesma hora em que ele desvirou a Rugosa.