O trem blindado

 

Há  uma névoa densa, branca e fria que recobre a paisagem preta e também branca. Não há  outras cores nas intermináveis planícies que o trem atravessa.  Não é na chegada, nem na partida, que o gesto do homem adquire sentido, é na travessia.

Uma vez por dia o trem é atacado por fogo de fuzis e morteiros. E dos canhões novos em folha de última geração, cedidos por Prússia ao exército branco.

Entretanto, a coragem dos bolcheviques é imensa, capaz de derrotarem inimigos poderosos pela pureza e determinação nas convicções, ou simplesmente porque os bolcheviques não temos por onde retornar. Não há retaguarda do trem blindado.

Às vezes o trem para e seus soldados sustentam o fogo inimigo e inclusive contra atacam – outras vezes, Trótski ordena continuar a travessia. Nesses casos somente alguns soldados respondem ao fogo. A maior parte joga-se no chão até os disparos finalizarem. O próprio Trótski vai parar no piso do vagão protegido por dois voluntários, um de cada lado, dispostos a serem eles os que recebam os disparos para que Trótski siga sua missão.

Nas noites de lua nova o terror é absoluto. Não se enxerga nada porque está escuro e porque a luz do trem é apagada para não servir de alvo.

Quando o trem é atacado e o fogo respondido e há trovões na tempestade, tempestade de neve que se aproxima, tudo fica envolvido na nuvem de fumaça de pólvora entre os gemidos dos feridos misturados com as vozes dos comandos e com o monótono barulho das rodas do trem e que nunca se interrompe.

De vez em quando, um soldado no trem é morto por um estilhaço de bala de canhão ou por um certeiro tiro de fuzil. Os olhos do corpo são fechados e o cadáver mantido dentro do trem até uma possível parada próxima. Às vezes o corpo é simplesmente jogado e abandonado na estepe congelada, supondo que o frio manterá o cadáver, até um improvável sepultamento digno por parte do inimigo.

Quando o trem para – desde o vagão de Trótski escuta-se  o crepitar da locomotiva imóvel, misturado com os sons dos grilos e das corujas entre as cem espécies de pássaros que nunca se  suspeitaria  habitassem uma região tão gelada.

Uma vez o trem estancou porque uma coruja quis atravessar uma das janelas para se reunir com sua própria imagem refletida pelo vidro.Trótski deixou os mapas de guerra sobre a mesa, colocou o sobretudo e o gorro de pele e foi socorrer a coruja desmaiada deitada na neve. Uma roda de aço se formou em torno dele. Trótski voltou com um copo de água com açúcar, a coruja reanimou, deu uns giros em torno do gorro de pele e saiu voando rumo à floresta congelada. A coruja ressuscitada foi o assunto da carta desse dia de Trótski a S.

Trótski

Atravesso o trem, passo de um vagão a outro. Nos primeiros vagões observo ou sou observado por soldados ébrios de álcool ou vitória, afinal, os bolcheviques estamos ganhando esta guerra contra o exército branco, outra coisa é ganhar a guerra contra nós mesmos, mas esta é outra questão, pois nestes anos, como não encontrar na guerra o sentido para nossas vidas, como não se contentar ou satisfazer com ser soldados de Trótski, como não idolatrar ele e Lenin, nossos líderes, por isso que agora que Trótski me manda chamar, como não correr para os vagões de trás, como não esbarrar com os corpos dos soldados bêbados de álcool ou de angústia. Corro pelo trem de Trótski, peço licença em russo, lembro que sei russo porque conheço todas as línguas. O trem se separa dos trilhos e decola. Agora será todos os trens, o trem de Trótski será assim conhecido um símbolo do aço, para todas as gerações. O Trem flutua, penso em russo que estou em um quadro de Marc Chagall, mas na verdade estou no trem de Trótski que sobrevoa toda a Rússia, entra no espaço aéreo da Alemanha e da França, porque nossa missão é internacional, os bolcheviques não precisamos mostrar o passaporte, como internacionalista é a base do amor de todos os amores, como seria amar em russo, mas não há tempo porque a artilharia antiaérea da burguesia ataca os sonhos com metralhadora e mergulhamos no ano de 1919, vomitam fogo os canhões e fuzis do trem blindado de Trótski. Agora sei que serei imortal por estes anos, entrarei na lista de heróis como ajudante de Trótski, com Che e Rosa, com os mártires  assassinados da Comuna e de Chicago. Corro e escuto. Falo todas as línguas, o trem blindado tem autonomia e ganhou mais uma batalha. O trem desce e pousa suavemente em um campo de gelo. No fim, chego no vagão de Trótski, ele examina uns documentos e alisa a barba, me vê, me examina, minha felicidade é perfeita. Sei que um dia pagarei por ela. Sem falar, Trótski faz um gesto, sento, ele coloca na minha frente um papel, leio, é uma carta para a esposa, você, pensa, pergunta, que é carinhosa o suficiente?

A Carta de Amor de Trótski

Cara S.

As peripécias dos combates não me deixaram muito tempo nem energia disponíveis para te escrever. Como estão nossos filhos? como está você? Como tem superado o racionamento de alimentos? Penso sempre em você, sempre com muito carinho.  A vida aqui transcorre monotonamente sobre trilhos. O trem liberto pela velocidade nos oprime pela rigidez do percurso. Em lugar de trem blindado deveria  chamar-se trem menchevique pelo repetitivo extermínio de tropas no trajeto, não fosse porque os mencheviques tem se somado aos inimigos, da revolução –  nossos inimigos. A minha última novidade é D, um jovem soldado recém-formado em Moscou que se apresentou como voluntário e veio parar no trem. Comporta-se  como uma espécie de secretário e cuida da minha correspondência e revisa os textos de todos meus proclamas e artigos para os jornais. É dele uma fantasia que se tornou conhecida por todos os habitantes neste trem – o trem blindado não anda mais sobre trilho e se converteria num trem voador, para transpormos fronteiras, proclamando a revolução socialista. Nada mais aliviante  para o que somos obrigados a escutar a todo momento, o monótono som do trem se deslocando.

Em Moscou será primavera e o desabrochar das plantas e flores me recordará que nosso amor sempre renasce e se renova.

Com paixão revolucionária,

Leon Trótski

Aprovo a carta, depois de mudar algumas palavras e depois de acrescer ‘Amor’ e ‘Paixão’.

– De acordo, diz Trótski, pode mandar, aqui está o envelope. Coloco o papel no envelope, parece mentira mas na escrivaninha de Trótski há cola para papel . Fecho o envelope. Observo o remetente e  estremeço: “Leon Trótski no Trem Blindado”. O destinatário é S., em S. Petersburgo.

Levanto a vista, estou a um ponto de perguntar como fazer a postagem, o trem corre lentamente sobre os trilhos. Entretanto, Trótski está agora com três comandantes, debruçado sobre os mapas das operações.

Passa um oficial, que reconheço por uma estrelinha vermelha no ombro de sua camisa, os uniformes são todos iguais.

Pergunto se há correio a bordo do trem – parece mentira, há – afinal é onírico o clima deste texto – vou até o vagão correio e entrego a carta. Um soldado coloca-a  em um saco escuro, enorme e remendado.

– É de Trótski, digo

– Já vi – sorri … Sei ler.

– Como vai fazer? O trem avança com velocidade mais rápida.

– Na próxima estação jogamos o saco

– Não tem medo que ele  se extravie?

Não me responde. Agarra o saco e caminha até a plataforma externa do vagão.

O Trem passa a toda velocidade pela próxima estação, o soldado joga o saco, na estação é colhido do chão.

O soldado me olha: Pronto, diz, chegou, mais rápido que a cavalo.